sexta-feira, 20 de agosto de 2010
PERDA DO SI
O ser humano é, na sua essência, um animal social, programado para viver em grupo, através do qual mais facilmente pode desenvolver os sentimentos, transformar os instintos primitivos em razão, ascendendo emocionalmente até atingir o patamar da intuição. Não obstante, a herança ancestral de exclusiva vinculação com a espécie, mantém-no, em algumas faixas da experiência humana, com as reações agressivas em referência aos demais membros da sociedade.
Essa conduta atávica perturbadora se desenvolve como individualismo, que o isola da comunidade, empurrando-o para a vivência de conduta estranha e alienada.
Outras vezes, para fugir a esse comportamento, persegue o sucesso com avidez tormentosa, nele colocando todas as suas aspirações.
Quando isso ocorre, e não possuindo resistências morais em desenvolvimento nem maturidade psicológica, torna-se massificado pelas conquistas tecnológicas, pela mídia insensível, desaparecendo no volume da sociedade, confundido com todos, sem possibilidades de iniciativa pessoal, de auto-realização, de identificação dos objetivos essenciais da existência humana, ocorrendo-lhe a perda do Si.
As suas são as aspirações e os gostos gerais, por sentir-se esmagado pela propaganda que o aturde, quanto mais ele a consome.
Sem opção, porque desidentificado com o Si, o ego, atormentado e inseguro, sucumbe pela indiferença ao assumir atitudes excêntricas como necessidade de autoafirmação.
Nessa busca, a sua definição pessoal se faz arrogante, com peculiaridades que chamam a atenção e provocam comentários. Sua indumentária, conduta, aparência e gestos mascaram a timidez e a importância emocional de que se sente vítima, numa forma de agressão ao sistema, ao qual não se impôs, e que lhe torna a realização pessoal tormentosa.
A falta de individualidade é compensada pela explosão do ego que aturde.
O indivíduo, nessa situação, tem medo da convivência social, e quando forma o seu grupo, é para esconder-se e chocar a sociedade em geral.
Normalmente, trata-se de alguém enfermo. Além dos conflitos psicológicos que o assaltam, sofre de outros distúrbios fisiológicos, especialmente na área do sexo, na qual somatiza as inquietações, mascarando-se para negar a dificuldade e chamar a atenção pelo exotismo em que mergulha.
A sociedade agita-se em torno do sucesso, em razão do ilusório poder que ele proporciona e por decorrência de raciocínios que não correspondem à realidade, tais como: a aquisição da paz, a vitória sobre impedimentos e a ausência de problemas.
O êxito veste exteriormente o indivíduo, sem o modificar por dentro, nem conceder-lhe plenitude. Trata-se de um objetivo, que se pode também transformar em mecanismo de fuga dos conflitos, que se não tem coragem de enfrentar ou que se prefere ignorar.
Não raro, ao conseguir-se o êxito, depara-se com o vazio interior, a desmotivação, o tédio.
São comuns os biótipos de sucesso que se apresentam frustrados, magoados com a vida, sucumbindo em depressão...
Aqueles que lhes invejam o luxo, a família sorridente, as extravagâncias, não percebem que tudo isso são exibicionismos que se distanciam da verdade.
Alguns triunfadores, na realidade, são tímidos quando em convívio particular - astros da mídia e sucessos das finanças -, denunciando receios injustificáveis, e quando descidos do pedestal da fama confundem-se na massa, tornando-se insignificantes.
A vida plena exige criatividade, movimentação, integração vibrante e satisfatória na busca do prazer essencial.
Todos os esforços que movem aqueles que triunfaram sobre si mesmos, através das atividades a que se entregaram - artes, ciências, filosofia, religião -, anelavam pelo encontro, a conquista do prazer e da plenitude.
Mas, não somente eles. Outros também que se não tornaram conhecidos e que não se massificaram, mantendo os seus ideais e lutando por eles com estoicismo e abnegação, alimentavam o desejo de tornar a existência prazerosa, compensadora, mesmo quando isso os levava ao holocausto, à perda dos haveres, do nome, da situação, preservando com serenidade a ambição de conquistar a imortalidade.
Na perda do Si - efeito da vida moderna - o indivíduo frustra-se ficando atrás daqueles que brilham, consumindo-lhes o sucesso, ao tempo que os ajuda a vender mais, a desfrutar de mais êxito.
A sua invisibilidade sequer é percebida, mas constitui apoio e segurança para aqueles que se destacam.
De outra forma, a ocorrência também contribui para o aumento da criminalidade, para as condutas aberrantes.
A agressividade surge, então, quando o espaço diminui, seja entre os animais ou entre os homens. Comprimidos, tornam-se violentos.
Impossibilitados de alcançar ou de serem alcançados pelas luzes do sucesso, explodem em perversidades, em condutas criminosas, que os retiram do anonimato e os transformam em ídolos para os outros psicopatas que os seguirão, neles tendo os seus mitos.
Por sua vez, os seus líderes são indivíduos reais ou conceptuais que a mídia celebriza pela hediondez disfarçada de coragem, por que são defensores da Lei e da sociedade, embora os métodos truanescos de que se utilizam ou pela habilidade de burlarem o sistema, de se tornarem justiceiros a seu modo, ou de se imporem pelo suborno, pelo medo, pelo poder que aos outros reduz ao nada.
Uma vida saudável não naufraga na perda do Si por estabelecer os seus próprios ideais, expressos em uma conduta harmônica dentro das diretrizes do socialmente aceito e caracterizada pela autoconsciência.
O sucesso exterior não prescinde daquele interno, que decorre da perfeita assimilação dos objetivos existenciais e dos interesses pessoais.
Quando se diz que outrem está realizando isso, tal não significa a verdade, mas o que dele se pensa, que ele projeta, ou no que ele crê sob o ponto de vista social, material, artístico, cultural...
A auto-realização é como um processo de autoconquista e de alo-superação, no qual se harmonizam os sentimentos, a razão e as aspirações.
Enquanto o indivíduo na massa desaparece, aquele que é feliz se destaca, irradia poder, prazer, alegria. Pode não ter valores materiais que despertem ambições, mas são ricos de saúde moral, de paz, de equilíbrio. Os seus olhos têm brilho, a sua face movimenta os músculos, a sua é a expressão da vida, da conquista interna.
Na massa, a pessoa está amorfa, patibular, morta...
A perda do Si, sem dúvida, é uma das muitas enfermidades dos tormentos modernos.
Joana de Ângelis